Friday, June 09, 2006


o sabor dos sabores
Miguel Castro Caldas com Arlete, António Aires, César Almeida, Jaime, José Moreira

Havia um rei que tinha três filhas e perguntou-lhes por onde é que elas lhe gostavam.
As duas mais velhas responderam, uma pela alma, outra pelo coração, e para escrever sobre os sem-abrigo é preciso ir viver com eles e sofrer o que eles sofrem.
Tu, Arlete, a mais nova, mas não a menos querida, diz-me por onde me queres.
Sou muito calada, disse ela, gosto mais de ouvir do que falar, e então o César, isto é, o César Almeida, o rei deste reino, que ao princípio estava a um canto a colar o selo do passe, só um minutinho, e só então é que se veio sentar no cadeirão, disse com a sua voz arrastada de rei: sempre é melhor a santa casa do que ir gastar sapatos na almirante reis, aqui como o meu amigo Aires.

António Aires, de Castro de Aire nasceu no monte ao sol. António Castro Daires não gostava de guardar porcos, e veio para lisboa no dia 17 de abril, ou 18. E não chegou a partir para França, onde a vida é cheia de bonança.

— Eu quero tanto ao meu pai como ao sabor dos sabores.

— O sabor dos sabores? — o pai não gostou nada desta resposta, porque entendeu que não era querer-lhe bem, então mandou Arlete para fora do reino.

Sempre é melhor a santa casa, apesar das lacunas que tem, do que ir gastar sapatos na almirante reis.
Pois, diz Castro Daires, eu andava o dia todo a subir e a descer a almirante reis, que sempre é melhor do que estar parado. E Então vem Jaime, a dizer que sempre é melhor estar parado do que ir trabalhar, porque quando a gente ganha dinheiro, somos postos fora do abrigo, mas o dinheiro não chega para alugar um quarto e comer ao mesmo tempo. Temos de escolher: ou comes ou quartas.
Fora do reino, Arlete foi oferecer-se para trabalhar num lar de idosos chamado câmara da morte. Lá, acordavam os velhos a meio da noite para fazer a cama, e alguns, por falta de espaço, eram postos a dormir no chão. Mas como Arlete era uma princesa, e isso fazia-lhe impressão, atirou-se à dona do lar e bateu-lhe bem, pegou nas coisas e foi-se embora. Ainda há-de vir um escritor a ir viver com os sem-abrigo para escrever um livro sobre eles, disse o zé, é preciso ir viver com eles e viver o que eles vivem. Mas um escritor escreve o que pode, disse eu,

disse eu pela primeira vez, um gajo escreve o que pode

ir para a rua e tapar-se de cartões, mas quem diz que depois vai escrever alguma coisa

pois é, disse o Zé, miséria é uma palavra estranha,

pedir às palavras que venham,

há a miséria que se vê e a miséria que se vem, o Camilo que não tinha reforma, escrevia, como norma, para viver, e quando ficou cegueta deu um tiro na cabeça para não passar fome, e eu conheço um homem que pegou na manta e foi para a rua para não ficar a dever nada a ninguém,

então Arlete, a linda princesa, fez um jantar maravilhoso.

E nós fomos almoçar. E a comida estava cheia do sabor;

Menos a do rei, menos a tua, que passas pela rua.

Arlete: és mesmo estúpido, então não vês que o sabor dos sabores é o sal? E qualquer dia vais ser tu, a pedir às pernas que passam por ti que não te ignorem.
Bendito louvado, conto acabado.

MEDIA
Poder ou contrapoder?

Ao longo dos últimos vinte anos tem vindo a estreitar-se a colaboração entre os agentes da globalização económica e dos meios de comunicação de massas.

A verdade é que os primeiros já não vivem sem os segundos, uma vez que a "revolução económica" com vista à formação de uma Aldeia Global, a favor da abertura de novos mercados onde quer que eles se encontrem, acelerou e se desenvolveu graças à revolução tecnológica nos meios de comunicação, com que interage de uma forma cada vez mais conivente e interdependente.

Uma parceria valiosa, dado que o enorme avanço tecnológico dos media, nomeadamente através da grande "auto-estrada" da comunicação que é a Internet, como alguém lhe chamou, permite fazer circular, a grande velocidade, uma diversidade e quantidade de informação nunca antes imaginada que, em poucos segundos, chega aos lugares mais longínquos do planeta.

Esta abundância de informação é preciosa para vender mais; para explorar mercados desconhecidos, e é nela que repousa a prosperidade crescente dos grupos económicos dominantes, que operam à escala planetária, a cujos interesses se subordinam a grande maioria dos media de todo o mundo, com prejuízo de critérios de isenção, justiça e ética, segundo críticos e observadores.

Que papel?

Tem sido precisamente ao serviço destes grupos, dizem alguns analistas, que se perdeu o espírito inicial da comunicação social. No mundo ocidental, civilizado e moderno, saturado de altas tecnologias, a "voz das pessoas sem voz", como o definiu o sociólogo espanhol Ignacio Ramonet, o "quarto poder" que é representado pelos media, está longe de ser o que era ou, pelo menos, de exercer as anteriores funções segundo os princípios em que se fundou.

É verdade que, durante décadas, foi uma força indispensável contra os abusos de poder, cabendo-lhe repor as verdades, dar voz às críticas, denunciar injustiças e revelar segredos incómodos. Durante muito tempo, a seu cargo esteve, em contextos democráticos, a regulação dos excessos dos poderes legislativo, executivo e judicial, naturalmente susceptíveis de errar, como sublinha o sociólogo espanhol.

E também é verdade que a sua intervenção é muitas vezes determinante nos regimes ditatoriais, em que a violação dos direitos fundamentais dos homens é prática comum, em que a informação é, por norma, pouco credível e em que poucos se atrevem a discordar da autoridade imposta, divulgando as suas opiniões ou denunciando violências e injustiças.

Não foram raros os jornalistas que pagaram com a vida a coragem das suas denúncias, como ainda acontece, por exemplo, nalguns países da América do Sul. Mas, entretanto, e muito depressa, muita coisa mudou. De tal forma que o papel de denúncia e defesa da justiça, a favor do bem comum, foi-se tornando progressivamente mais difuso, até chegar a um certo esvaziamento das funções principais do jornalismo. Para isso tem contribuído, em boa medida, a esmagadora quantidade de informação difundida graças à evolução tecnológica, que tem tornado o papel do "quarto poder" cada vez mais confuso, porque em causa estão cada vez mais confrontosde interesses, entre "o mercado e o Estado, entre o sector privado e os serviços públicos, entre o indivíduo e a sociedade, entre o íntimo e o colectivo, o egoísmo e a solidariedade", declara Ramonet.

Imagem e símbolos de poder.

Na dinâmica gerada pelos confrontos e interesses de que nos fala Ramonet e que domina as sociedades modernas, o poder da imagem foi crescendo e hoje é imenso. As imagens certas no momento certo "vendem" qualquer produto, económico, social ou político. E embora as imagens sugeridas pela escrita ou pelo som possam ter imensa força, como é visível na imprensa escrita ou radiofónica, não há veículo mais eficaz para a construção e difusão de uma determinada imagem do que a televisão.

A força e a eficácia destes meios leva a que o poder político, em particular, tenha vindo a procurá-los cada vez mais, no sentido de fazer chegar ao público imagens que o promova adequadamente. Sucesso e poder andam de mãos dadas, ou seja, um é consequência do outro e vice-versa. E ambos são tanto mais ambicionados quanto é certo vivermos numa sociedade profundamente narcísica, em que é muito comum a necessidade permanente de compensação para males bem mais profundos e sombrios, que se escondem, justamente, em certas personalidades particularmente "mediáticas".

Quanto maior é a descompensação, dizem os especialistas, maior é a apetência pelo poder e maior a dependência de difusão de um certo tipo de imagem. Daí a corrida aos media, numa permanente tentativa de sedução, frequentemente associada a símbolos de poder que muitos usam numa luta obsessiva pela visibilidade. Já não chega um "minuto" de fama. Querem todo o tempo de "antena" possível. Por isso, procuram-lhes os favores, e tentam todos os truques para "aparecer" e convencer o público. Hoje, toda esta dinâmica, diz o sociólogo francês Rémy Rieffel, "mudou as estratégias de comunicação", e sobretudo, acrescentamos, as "práticas políticas".

Contrapoder?

Como forma de oposição a este alarmante "envenenamento" da opinião pública pelas forças mediáticas "vendidas" a variados poderes, Ramonet insiste na possibilidade de se vir a criar um novo contrapoder uma vez que os media, particularmente a televisão, já não correspondem ao conceito inicial de mediadores de informação.

É preciso salvaguardar o que resta da liberdade e isenção iniciais, até porque essa mesma liberdade "não é mais do que uma extensão da liberdade colectiva de expressão, fundamento da democracia". Para isso, considera indispensável" desenvolver uma reflexão sobre a maneira como os cidadãos podem exigir aos media mais ética, ver-dade e respeito por uma deonto-logia que permita aos jornalistas agir em função da sua consciência e não em função dos interesses dos grupos financeiros, das empresas e dos patrões que os empregam".

Este seria o quinto poder, o dos cidadãos responsáveis e elucidados sobre o mundo e as questões que os rodeiam. E uma tentativa de acabar com toda "a espécie de imposturas, boatos, deformações, distorções, manipulações". Por outro lado, Rieffel declara que "não há ditadura dos media", mas sim uma ditadura as audiências. E uma forte influência sobre os políticos que, entretanto, têm vindo a mudar o seu comportamento, apostando na construção e veiculação de determinadas imagens, tudo isto evidenciado pelas próprias características do "tempo mediático": curto, emero, directo e instantâneo, segundo as suas palavras. "É uma lógica que leva ao espectáculo ", em suma.

Educação e profissionalismo.

Grande parte da aposta do sociólogo francês para ultrapassar a " lógica do espectáculo" mediático e tentar anular os seus efeitos mais negativos assenta na necessidade de se fazer, junto dos jovens, "uma educação para os media", ou seja, Rieffel clama pela urgência de educarmos os nossos filhos o sentido de os ensinar a "descodificar a imagem" como ela se apresenta aos nossos olhos. É preciso levá-los a perceber que nem tudo o que vêem é verdade, que existem montagens da realidade e, sobretudo, fazê-los tomar consciência das dinâmicas escondidas inerentes à promoção pessoal.

É preciso desenvolver nos mais novos o sentido crítico e o distanciamento que lhes permita olhar para lá das aparências.

Outra aposta é a da formação dos jornalistas. Nela, Rieffel coloca a sua maior esperança, defendendo que" um jornalista é tanto mais competente quanto melhor compreende o assunto sobre que fala". O que joga a favor de uma atitude cada vez mais profissional, sempre na tentativa de informar com justiça e imparcialidade, tendo em coma uma série de princípios.


Texto de Ana Vieira de Castro
Design
Antes manipulador que manipulado

Nos livros que cria, Luís Miguel Castro joga com os textos e com as imagens. E nunca à defesa As imagens televisivas entravam-lhe por ali adentro sem pedir licença.

Luís Miguel Castro, nascido há 50 anos em Guimarães, reparou que andava a perder demasiado tempo com elas – e vai daí, acabou com a televisão em casa. Desde então, não só passou a dedicar-se mais aos livros como até anda entretido com a ideia de procurar palavras em dicionários e enciclopédias.

Quanto melhor leitor for, melhor designer será, acredita Luís Miguel Castro, que agora assegura a concepção artística dos títulos publicados pela nova editora Guerra e Paz.

Antigo director de arte da Marie Claire e da Kapa, Luís Miguel Castro sempre quis que o seu trabalho revelasse uma opinião: «Não é paginar às cegas, mas sim em função de um texto, seja ele jornalístico ou literário».

Foi assim nas revistas, nos catálogos e nos livros criados, ao longo de três décadas, por aquele a quem já chamaram «o» mestre. Quase sempre à mão, recorrendo às colagens, fotografias e pinturas sobrepostas, dispensando não raras vezes as inúmeras possibilidades de um computador.

«O ecrã ainda não é a forma. Não é igual ver uma coisa no ecrã e vê-la no papel. E não sei se, algum dia, virá a ser», defende Luís Miguel. Talvez, por isso, o também designer Jorge Silva comente que, hoje, o vê sobretudo como «uma espécie de artesão».

Cinema
O filme da treta.

Depois do palco, da televisão, da rádio e do livro... Toni e Zezé, os tugas de Conversa da Treta, chegam ao cinema.

As festas populares de Santo António parecem ter chegado mais cedo ao bairro lisboeta da Bica. No Largo de Santo Antoninho há balões de papel e fitas coloridas presos nos candeeiros e nas árvores que fazem sombra sobre as mesas de toalhas aos quadrados. Em vez das habituais sardinhas assadas, há restos de laranja e sobras de feijoada, deixadas em malgas e pratos de barro castanho.

Não fossem os enormes projectores, os reflectores brancos e pretos, a câmara de filmar e o rebuliço que ali se instalou de repente e nem se perceberia que a Bica tinha dado lugar ao Bairro da Ladroa e as festas de Santo António à Feijoada Anual. Onde antes estava uma fonte, existe agora uma estátua a «El Infante D. Fuas Bogalho, ‘o atrofiado’», um distinto cavalheiro de chapéu e capa vagamente parecido com o actor José Pedro Gomes, em cima de um burro com enormes orelhas e as feições de António Feio.

É o cenário de uma das cenas de Conversa da Treta – O Filme, que promete levar os famosos tugas Zezé e Toni às salas de cinema portuguesas, a partir de Outubro.

«Procuramos o mesmo impacto que tivemos no teatro, na televisão e na rádio», afirma António Feio, acrescentando que «o grande objectivo é levar mais gente ao cinema». Para José Pedro Gomes, «o cinema é a forma de perpetuar o trabalho – o teatro é efémero, a televisão é consumida com rapidez, o cinema é o que fica para o futuro».

O filme (realizado por José Sacramento, com argumento de Filipe Homem Fonseca e Eduardo Madeira) não tem qualquer financiamento público, o que não impediu o produtor Leonel Vieira de levar a sua ideia em frente, tentando recuperar o espírito perdido do cinema de comédia português.