Wednesday, February 01, 2006


Os sinuosos caminhos da comiseração


Com as suas infinitas variações, o comportamento humano é frequentemente um enigma. E, se pensarmos bem, chega a ser desconcertante a forma como, irreflectidamente, nos deixamos levar pela tendência para sentirmos dó, pena de alguém que, por esta ou aquela razão, se encontra numa situação adversa.

Este é um sentimento que pode ser muito empobrecedor no sentido em que implica acreditarmos e aceitarmos que o outro não tem ou não teve a prerrogativa de pegar nas rédeas da própria vida, construindo-a com responsabilidade a partir das suas escolhas pessoais. Mas porventura muito pior do que sentirmos pena dos outros é sentirmos pena de nós mesmos.

Chega a ser deprimente a forma como alguns de nós contraem o mal do “coitadinho”, dispondo-se a viver como vítimas, chamando destino ás asneiras cometidas, coleccionando lamúrias e amarguras. Esta síndrome, que geralmente está associada a uma baixa auto-estima, é muito mais comum do que se possamos imaginar.

Na opinião dos especialistas, o que torna difícil combatermos este comportamentos é o facto de as supostas vitimas se comprazerem com a própria condição, ou seja sentirem uma doce indulgência para com as suas dores, o que acaba por se traduzir em muitas circunstancias, numa perversa massagem ao ego. Considerarem-se á mercê de um destino incontrolado, desprotegidas, abandonadas por todos é a única forma de abrirem a atenção dos que a rodeiam. Não é fácil convivermos com os coitadinhos, mas é necessário aprendermos a fazê-lo, pois nos tempos que correm esta síndrome é praticamente epidémica.

Limites humanos.

É curioso constatarmos que muitos de nós comunicamos mais facilmente quando o assunto é problema, doença, desfeita, infortúnio, o que acaba necessariamente por contribuir para a desesperança geral.

Não podemos deixar de ter consciência de que isto concorre para um clima de pessimismo bastante prejudicial, que facilmente nos leva a resignação e ao “deixa andar”.
Claro que, mesmo para quem tem um temperamento equilibrado há momentos em que parece que o céu vai cair em cima da cabeça em que tudo corre mal sem aparente explicação: o esforço não reconhecido no trabalho, os filhos têm más notas na escola, falta o dinheiro ao fim do mês, o clube de eleição continua a perder, o petróleo a subir, em casa um rol de queixas e reclamações e por ai adiante. Normalmente são fases, aquilo que chamamos os altos e baixos da vida. E perante alguns problemas graves, nada mais natural do que ficarmos abatidos, reagirmos com tristeza, que o tempo vai atenuando e que não equivale como muitos pretendem a um estado de depressão.

Mas, se repararmos bem, ultimamente ninguém tem o direito de incomodar os outros com a sua silenciosa tristeza. Basta olharmos para os programas de televisão ou para os anúncios de publicidade para verificarmos que as pessoas alegres, bonitas e divertidas, como se só houvesse espaço para essa alegria de plástico. A tristeza entrou na lista dos sentimentos politicamente incorrectos já que, afinal de contas, se pode resolver uma dose diária de Prozac ou de qualquer outra panaceia.

De facto, neste clima de pressão, de riscos e de concorrência, é preciso conhecermos os nossos limites e as nossas fraquezas, fazermos uma ideia de quem somos e do que queremos para não nos deixarmos desmoronar. E convém termos cuidado para não substituirmos os “modestos” sentimentos de tristeza, preocupação, incómodo e fragilidade, pelas muito mais latinas e dramáticas emoções de ansiedade, depressão, culpa e auto comiseração.

Demasiado sério.

Enquanto a característica da infância é o seu inevitável egoísmo, o elemento próprio da maturidade é o sentido de responsabilidade. A conduta deixa de se guiar apenas pelos instintos para abrir espaço à razão e às exigências que a vida impõe. E, portanto, o egoísmo num adulto não deixa de ser um desajustamento da personalidade em que o corpo amadureceu mas o espírito não. Neste sentido, os terapeutas sustentam que o nosso real inimigo é esse tipo de carinho, de desvelo por nós mesmos, em que tudo gira em função do ego, e a realidade é vista através do espelho deformado da auto compaixão: “que mal fiz eu?”, “por que é que isto só me acontece a mim?” São estes pensamentos perante uma dificuldade que geram infelicidade, e que podem resvalar na “vitimização”, um caminho que facilmente nos conduz à alienação de nós próprios.

No que diz respeito à condução da nossa existência podemos de facto iludir-nos de múltiplas formas. Levamo-nos demasiado a sério e daí resulta uma série de consequências desagradáveis para nós e para os que connosco convivem. Vendo bem, não é raro que uma frase ou um gesto de outra pessoa aparentemente inócuos, ganhem aos nossos olhos o tom de uma ofensa. Somos doentiamente sensíveis neste ponto: se alguém se cruza connosco e não nos cumprimenta com o sorriso que esperávamos, logo deduzimos que não nos está a dar a atenção que julgamos merecer; se discordam de nós neste ou naquele assunto, facilmente somos levados a colocar essa atitude num plano de afronta pessoal; e se esquecem de uma coisa que tínhamos pedido, ou se não dão total atenção às nossas palavras, ficamos com essas ofensas cá dentro, na forma de rancores e ressentimentos.

Falta-nos, porventura, o sentido de humor, a capacidade de ironizar e de sorrir da própria imagem, de distinguir o essencial do acessório, de relativizar os erros e as fraquezas do comportamento humano. O que não é nada fácil, diga-se de passagem. Contudo, cultivar esta atitude é um sinal de inteligência e lucidez. Permite-nos porventura conviver melhor com os riscos, incertezas e conflitos, combater o egocentrismo, preservar o equilíbrio psicológico e os laços de convivência.

Liberdade e responsabilidade.

Os especialistas em comportamento defendem que o passo fundamental para a conquista da liberdade interior passa por assumirmos que não somos escravos das circunstâncias, e que, com maior ou menor margem de manobra temos capacidade para fazer opções. Esta é, afinal, a eterna questão do livre-arbitrio que tem sido pensada desde os tempos imemoriais.

Na verdade, se não tivéssemos liberdade de escolha seria difícil compreender como poderíamos ser responsáveis por aquilo que fazemos, isto é, não haveria justificação para nos censurarem quando erramos, nem para nos elogiarem e recompensarem quando fazemos algo digno de mérito.

Temos de facto alternativas, e quanto maior for o grau de consciência pessoal, mais facilidade teremos em perceber as razões que nos levam a agir desta ou daquela maneira, o que nos oprime e nos tolhe a vontade.

Sobre o mérito desta última, Friedrich Schiller, poeta, dramaturgo do séc. XVIII escreveu o seguinte:”É a vontade que faz o homem grande ou pequeno”.

Na verdade, uma vontade firme a alavanca que move obstáculos que levanta o fardo da rotina quotidiana, esse peso que tantas vezes nos impele para baixo. Esta força libertadora, fruto da reflexão e da autodeterminação pode levar-nos a rever referências, abrir-nos novas perspectivas e tornar-nos mais receptivos à mudança.


Texto de: Cláudia Freitas

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